terça-feira, 24 de agosto de 2010

Eli Vieira (parte 2)



Você já se tornou conhecido no meio dos blogueiros-cientistas e aproveita, como poucos, os recursos da internet oferecidos para divulgação do conhecimento. Qual o retorno por seu enorme investimento de tempo e trabalho?

Tive um retorno acadêmico com o Evolucionismo.org, porque o incluí como resultado no meu terceiro projeto de iniciação científica. Mas isso foi na graduação. Agora é um projeto voluntário e pessoal, tanto meu quanto do Rodrigo Véras. Ganho apenas a satisfação de pensar que curiosos como eu têm mais uma fonte de informação para se deliciar – mais um “Gato Zap” para quem quiser ver.

A história da nossa origem e nossa humilde posição na árvore da vida é uma história impressionante, detesto pensar que exista alguém procurando saber mais sobre evolução biológica no Google e se depare apenas com a torcida do contra, dos dogmáticos anticientíficos como os fundamentalistas da Lepanto e da Montfort. Era assim para as buscas da palavra-chave “evolucionismo” em 2008 e começo de 2009, antes de eu criar o blog. Agora, felizmente, o termo foi resgatado na internet por mim no Evolucionismo.org e por outros que têm contato com a produção científica do conhecimento em suas fontes primárias, como o pessoal do ScienceBlogs.com.br e da rede ResearchBlogging.org .

Outro ganho que eu tenho é menos nobre, desfruto do prazer sádico, do schadenfreude, de pensar em todos os criacionistas que sapateiam para ignorar o conteúdo do meu blog e o consenso científico em torno do fato de que nós e as outras milhões de espécies de seres vivos deste planeta viemos de um processo natural de descendência com modificação. Não prometo optar pela via politicamente correta quando se trata de expor a nudez dos mentirosos e desonestos de plantão. Adauto Lourenço e Enézio de Almeida não me deixariam tergiversar nesta questão – o primeiro é mentiroso, o segundo é desonesto, como já mostrei por aí.

Além da biologia, Eli Vieira também se interessa por filosofia e humanismo secular. Como leitora dos blogs e sites em que participa, sei de suas opiniões sobre religião, criacionismo, laicismo e ateísmo. Eli, você “sofre” ou percebe algum tipo de preconceito ou descaso das pessoas com quem convive por suas opinões e posicionamento diante de tais assuntos?

Dentro de universidades nunca fui discriminado por isso. Para perceber o grande preconceito que existe na população brasileira contra descrentes como eu, preciso sintonizar no programa do Datena ou ler as pesquisas de opinião. Sei que nem todos os ateus desfrutam do ambiente privilegiado de uma boa universidade federal, em que não importa sua opinião sobre religião, mas apenas sua capacidade de desenvolver um trabalho intelectual. Já ouvi casos de discriminação contra ateus em entrevista de emprego e até em violência num bar.

No máximo um ou outro colega estranha meu engajamento na Liga Humanista Secular do Brasil e no Bule Voador. Mas basta lembrar à pessoa que existe a bancada evangélica, que a Igreja Católica acobertou a pedofilia e que a Record pertence à Igreja Universal que ela logo percebe a necessidade dos ateus se firmarem como grupo político.

Não é segredo para ninguém que eu acredito mais na humanidade do que no tão conjurado fantasmão amorfo requentado do panteão dos cananeus pelos hebreus da idade do bronze, que é a entidade central das mitologias cristã, judaica e muçulmana. Acredito mais na humanidade porque percebi que todos os valores que aprendi com minha família e meus amigos independem completamente de existir um deus ou não, ainda que eles acreditem no contrário. Quem duvida disso que me diga: que frase moralmente aceitável não poderia ser dita por um ateu? Um ateu pode dizer “eu amo as pessoas”, pode dizer “eu odeio quem maltrata as crianças” e pode dizer “quero que a fome e a violência sejam banidas deste país”. Nenhuma frase moralmente aceitável com implicações práticas precisa assumir que Deus existe. Logo, a moral depende apenas de nós, é uma linguagem que entendemos e falamos com as emoções.

Além disso, Deus é visto pela maioria das pessoas que nele acreditam como uma entidade mental, que é capaz de ler pensamentos, atender a pedidos, entender a linguagem humana e criar coisas a partir de um planejamento. É uma pessoa com poderes infinitos e sem corpo. É um fantasma antropomórfico. Tenho tantos motivos para acreditar numa mente gigantesca e fantasmagórica quanto tenho motivos para acreditar em qualquer outra função biológica inflada para o gigantesco e o fantasmagórico: o sagrado ciclo de catálise enzimática, a santa germinação da semente cósmica ou a magnífica pena etérea que a todos perpassa com suas barbas e bárbulas espirituais. Se acham ridículo dizer que o universo veio da ramificação das bárbulas de uma pena invisível, ou da quebra da quiescência de uma semente titânica ou da incessante ação de um grupo de enzimas mágicas, também deveriam achar ridículo achar que o universo veio do planejamento da mente divina; porque mentes, tanto quanto penas, sementes e enzimas, são resultados contingentes da evolução.

Separo bem as duas atividades que gosto de fazer na internet através de dois conceitos de Platão: doxa e episteme.

Doxa é opinião, é um campo de disputa, principalmente a respeito de assuntos sobre os quais uma resposta definitiva não é possível de ser aferida por outros meios que não a argumentação. O Bule Voador e o Tetrapharmakos in Vitro (meu blog pessoal) são blogs doxásticos. Quem não aceita uma opinião (doxa) é quem discorda.

Episteme é conhecimento, é crença justificada. E sabe-se que é “justificada” porque não depende apenas de argumentação. Por exemplo, a evolução biológica é justificada porque temos evidências diversas que vão do nosso próprio DNA aos inúmeros fósseis documentados, sem falar na construção teórica científica com alto poder preditivo e explicativo que a acompanha. O Evolucionismo é um blog epistêmico. Quem não aceita um conhecimento (episteme) é apenas ignorante ou relutante.

Sou doxasticamente ateu e epistemicamente biólogo evolutivo. Ser ateu é ter uma opinião em particular, ser evolucionista é apenas estar informado.

Por isso não preciso alegar que todo evolucionista precisa ser ateu, nem que todo ateu precisa ser evolucionista. É uma ideia preciosa para os tempos de hoje, em que a tolerância é moeda rara no mercado.


Eli Vieira, muito obrigada pelo bate-papo no Grito na Janela; desejo-lhe muito sucesso pessoal e profissional. Por favor deixe-nos seus contatos para divulgação e fique à vontade para dizer o que mais lhe vier à mente.

Fico muito lisonjeado com a atenção e o carinho, saiba que são mútuos. Desejo o melhor pra você também.

É muito fácil achar o que ando fazendo na internet: Evolucionismo.org, BuleVoador.com.br e EliVieira.com – este último é o Tetrapharmakos in Vitro.

Este nome pomposo misturando grego e latim resume quase tudo o que eu disse nesta entrevista com um trocadilho duplo:

- “in vitro” (latim para “em vidro”) é um termo comum da biologia, que se refere aos procedimentos feitos em laboratório em instrumentos como o tubo de ensaios. O trocadilho está em associar o tubo de ensaios a “ensaios” de texto.

- Tetrapharmakos é o grego para “quatro curas” ou “cura em quatro partes”. O trocadilho aqui é que não há “fármaco” nenhum para ser posto “in vitro” – as quatro curas são recomendações filosóficas para a vida plena, derivadas da filosofia do grande Epicuro de Samos. E elas são: (1) não temer os deuses [porque quase certamente nenhum deus existe]; (2) não temer a morte [porque um sentido para a vida finita pode ser construído e a morte é apenas o incognoscível]; (3) saber que a felicidade é possível [pois depende do atendimento de necessidades humanas]; e (4) saber que podemos escapar à dor do corpo e da mente.

Investigar nossa própria natureza é um passo crucial para perseguir essas metas. Sendo inegável nossa condição de animais primatas humanos baseados em carbono, a biologia tem muito a contribuir para quem quer saber o que é necessário saber para viver plenamente e construir sua obra, qualquer que seja ela – ideias, famílias, um mundo melhor. Como estas e outras crenças precisam ser medidas, dissecadas, comparadas e julgadas, a filosofia é indispensável. E é por isso que faço tudo o que faço.

Abraços eucarióticos!

Beijos euarcontoglires! Adoro estas saudações informadas!

Um comentário:

  1. Gostei muito da entrevista, ótima para reflexão, boa divulgação do trabalho do Eli.

    Congratulações pelo blog, realmente coisas simples para pessoas inteligentes...

    Beijo.

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